A análise dos filmes de gângsteres Scarface - A vergonha de uma nação e Scarface, com
base no modelo da Jornada do Herói (Christopher Vogler), mostra que, em termos
de estrutura narrativa, as obras guardam mais semelhanças do que diferenças
entre si, o que confirma o processo de remake
realizado pelo diretor Brian de Palma, em 1983. Por outro lado, as particularidades se
referem especialmente ao uso de alguns recursos técnicos, perfil dos
personagens e abordagem da criminalidade, fatores que podem ser explicados, em
grande parte, pela própria diferença de duração e de contexto histórico dos
filmes. Scarface - A vergonha de uma
nação é de 1932 e possui cerca de 1h30. Já Scarface, do ano de 1983, tem duração aproximada de 2h50. Enquanto
o primeiro trata da criminalidade durante a Lei Seca nos Estados Unidos da
década de 1920, este destaca o tráfico de drogas nos anos de 1980 tendo como
cenário o território estadunidense no período da Guerra Fria.
Em termos de estrutura narrativa, as fases da
jornada do herói se apresentam de forma semelhante nas duas histórias, com
conteúdos, ordenamento e transições similares. As exceções são a etapa do
Encontro com o Mentor que, em 1932, diferentemente da versão de Palma, ocorre
antes do Chamado à Aventura, e a própria fase do Chamado. Enquanto este momento
se mostra bem marcado na versão de 1983, com o convite feito a Toni Montana para a
arriscada negociação com os colombianos, no original essa etapa se mostra mais
superficial, não específica. Isso, pois o convite feito por Lovo a Toni Camonte para
negociar com os dissidentes da gangue sul acontece no momento em que o gângster
já se encontra melhor inserido na aventura, praticamente no mundo especial.
No que diz respeito à duração das fases narrativas,
os contrastes devem-se à própria diferença de duração dos filmes, como já
citado. Nesse sentido, as diferenças implicam, naturalmente, no uso distinto do
tempo para enfatizar determinadas etapas da história ou aprofundar-se na
condução de certos personagens. Assim, por exemplo, o estágio referente ao
Caminho de Volta desenvolve-se de forma mais duradoura e com mais implicações
dramáticas na versão de 1983, assemelhando-se
a uma nova fase de Testes, Aliados e Inimigos. Já na versão de Hawks, essa etapa
se desenvolve de forma mais rápida, funcionando como uma breve transição entre a
Recompensa e a Ressurreição. Ainda no que diz respeito aos personagens, Manny e
Elvira de Scarface, por exemplo,
detêm mais ações na narrativa e desenvolvem mais aspectos de sua personalidade
do que Guido e Poppy na produção de Hawks.
Em termos de recursos técnicos, ambas as
produções seguem uma narrativa clássica, com montagem predominantemente linear
e câmera objetiva que tem o protagonista como foco na maior parte do tempo. Há
o uso estratégico de primeiro plano e close para dar destaque às expressões e
reações dos personagens em momentos de tensão e suspense. Enquanto no preto e
branco de Hawks os elementos da morte, violência e criminalidade são
especialmente representados por recursos de iluminação, com o jogo de luzes e
sombras em ambientes internos e noturnos, na produção de 1983 são as cores
fortes, como o preto e o vermelho, que adquirem um valor simbólico associado à
temática dos gângsteres. O registro excessivo e realista do sangue em Scarface, por exemplo, dá lugar a uma apresentação menos
gráfica das feridas em 1932, com planos mais afastados em situações violentas. Talvez
de forma a suavizar a agressividade das cenas e atender aos padrões da censura
cinematográfica. Ainda, se na obra original a trilha sonora musical é
praticamente descartada, sendo substituída por efeitos sonoros de tiros,
metralhadoras, movimentos de carros e assobios, no remake os recursos musicais são diversificados para representar as
diferentes etapas narrativas e também a condição íntima dos personagens.
Com respeito aos gângsteres, personagens
centrais da análise, a vida pregressa apresenta-se de forma semelhante em ambos
os filmes. Em Scarface - A vergonha de
uma nação um crime ocorrido nas primeiras cenas já oferece indícios de
criminalidade referentes à vida do protagonista. Em Scarface a narração inicial do cenário político entre Estados
Unidos e Cuba também cria expectativas em relação ao refugiado imediatamente
apresentado. Ainda que Tony Camonte e Tony Montana rebatam as acusações
iniciais que lhes são feitas, tão logo a história avance os indícios tornam-se
fatos e são estabelecidos a personalidade e anseios que os protagonistas irão
assumir ao longo de toda a jornada.
Os personagens detêm aspectos físicos
similares. Estrangeiros, possuem estatura semelhante, têm pele clara, cabelo,
olhos escuros e uma cicatriz na face esquerda. Ambos falam muito e de forma
articulada. Em termos psicológicos, são irônicos, destemidos, ambiciosos,
violentos, frios e determinados. Compreendem-se autossuficientes e capazes de
vencer sem a ajuda de outros. Têm um relacionamento conflituoso com a família,
principalmente pelo ciúme excessivo que sentem da irmã. No campo afetivo, também
não enfrentam relações satisfatórias. No romance mantêm uniões instáveis e têm
como amigo apenas um aliado que, ironicamente, irá sucumbir sob seu próprio
jugo ao final. Como aspecto moral, ambos dão valor ao compromisso e à
importância de se honrar a palavra, aspecto especialmente destacado em Tony
Montana. E na mesma medida em que são traídos e confrontados, também buscam a
vingança.
Apesar das semelhanças, alguns traços
psicológicos, morais e de relacionamento definem importantes particularidades
para cada anti-herói. Montana demonstra um nível de sensibilidade que é
praticamente imperceptível no perfil de Camonte. Apesar de toda a truculência e
destemor, Tony Montana revela um lado mais humano no trato com a família,
apesar de não menos intenso, e demonstra preocupação com a vida de inocentes. Na
maior parte das vezes mata em situações críticas, quando a ação mostra-se
questão de defesa da honra ou da própria vida. Já Camonte, mais esquemático,
demonstra uma frieza praticamente constante, com exceção do momento em que
enfrenta a morte da irmã. Sarcástico ao extremo, o personagem parece se
divertir diante dos riscos e, diferentemente de Montana, parece matar de forma
antes despropositada, como impulsionado por prazer ou compulsão. Exemplo disso são
os diversos assassinatos de membros da Zona Norte e o massacre de São Valentin.
A morte dos adversários é vista pelo personagem como apenas mais uma etapa em
sua busca pelo poder.
Ainda, a decadência do personagem em Scarface apresenta-se de forma mais
explícita e gradual do ponto de vista físico, psicológico e moral. O vício nas
bebidas e drogas, a obsessão pelo poder e riqueza, o ciúme pela irmã e os
desentendimentos com Elvira e Manny, por exemplo, atribuem ao personagem uma
demência gradativa que parece arrastá-lo irresistivelmente ao descontrole de si
mesmo e à derrota diante do inimigo. Por outro lado, a narrativa de Hawks não
destaca esses aspectos. Camonte alcança a etapa final mais íntegro físico e
psicologicamente, demonstrando apenas ligeiro abalo pela morte de Guido. A
sensação é de que o personagem enfrentou menos conflitos e foi afetado por
estes de maneira mais superficial. Tony Montana revela-se assim um personagem
mais complexo e paradoxal, o que o torna, consequentemente, mais interessante e
imprevisível na narrativa e, finalmente, mais próximo à realidade do homem
cotidiano.
A morte dos gângsteres, em ambos os casos, é a
concretização do fracasso do anti-herói após a ascensão e o apogeu pela riqueza
e prestígio. Tanto Tony Camonte quanto Tony Montana sucumbem diante do inimigo,
quando são contemplados de maneira irônica pelos dizeres “O Mundo É Seu” em uma
forma de coroamento trágico do mundo na criminalidade. Ao decorrer do
enfrentamento com a polícia, a morte de Camonte guarda um tom moralizante que
atende às exigências da censura na época do filme. O fim do criminoso pelas
mãos das autoridades garante certa sensação de punição, ainda que tardia, e
retorno ao equilíbrio, o que responde aos intertítulos introdutórios do filme
com a indagação da sociedade pelo combate à marginalidade.
Já a destruição de Montana assume aspectos
contrários em termos de narrativa e moralidade. Do ponto de vista narrativo, a
partir do momento em que Montana encara na etapa final um perigoso inimigo, com
resistência e aparente equilíbrio de forças, a condução da fase da ressurreição
gera mais imprevisibilidade e, assim, garante mais suspense. A longa sequência
final na mansão de Montana, as vitórias e derrotas parciais do protagonista e o
uso de montagem alternada são exemplos que contribuem para esse aspecto. Ainda,
ao apresentar a derrota de um gângster pelas mãos de outro, a sensação ao final
da narrativa é de impunidade, caos, negativismo. Em termos morais, a
criminalidade não é combatida, apenas reforçada em um dos lados.
Apesar de todas essas variações entre os
filmes, a causa primeira na morte dos gângsteres assemelha-se pela ironia. Ainda
que marcados por uma vida de ilegalidade, tanto Tony Camonte quanto Tony
Montana são vencidos por sombras que não representam os frutos diretos de tal
criminalidade. Camonte é finalmente rendido pela polícia após sucumbir ao ciúme
extremo pela irmã e assassinar o melhor amigo. Montana é fatalmente acuado
pelos homens de Sosa após negar-se a matar inocentes, descontrolar-se pelo uso
das drogas e fragilizar-se com o assassinato do melhor amigo. Assim, ciúme,
violência, impulsividade, vício e fraqueza causam a queda dos anti-heróis. Resultado
trágico de uma vida de excessos.
Em uma visão geral, a construção dos
personagens em ambos os filmes confirma as características clássicas do gênero
gângster. Os dois são personagens urbanos, estrangeiros nos Estados Unidos, com
o desejo de mudarem de vida. Enfrentam as adversidades com a busca determinada
pela riqueza e poder, estabelecem relações de poder e confiança, criam suas
próprias leis e, após a recompensa conquistada no submundo, encontram um
desfecho trágico. Também, Camonte e Montana mostram-se produtos do contexto social
na medida em que se constroem em meio à inexistência de leis, corruptibilidade e
ineficiência das autoridades públicas no combate à criminalidade. De forma
conclusiva os personagens são, em essência, um reflexo do homem comum.
Analisá-los é ampliar o entendimento do gângster em sua generalidade. Compreender
o contexto em que se inserem é compreender a própria realidade capaz de
resultar em tantos outros de mesmo perfil.
Finalmente, como resultado da análise com base
na Jornada do Herói, cabe destacar que tal modelo mostrou-se válido, ao atender
generalidades da produção narrativa; prático, ao sugerir referências de análise;
e eficiente, ao possibilitar uma compreensão ampla dos objetos propostos, tanto
de forma isolada como comparativa. Da mesma forma, a consideração de conceitos
sobre a linguagem cinematográfica e o personagem de ficção, a partir de outros
autores, garantiu um exercício mais detalhado de percepção dos objetos,
contribuindo para o resultado final.
A análise possibilitou não apenas compreender a
construção do gângster em duas narrativas específicas, mas ampliou a visão geral
do cinema enquanto linguagem ao demonstrar de forma sistemática sua capacidade
de contar histórias, transmitir sentidos, construir e conduzir personagens.
Por Rafaella Arruda
(Trecho adaptado a partir do trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) - Dez/2012. "A construção do gângster na narrativa cinematográfica: as faces de Scarface a partir da Jornada do Herói")